1.12.11

Uma estória sobre Palavras Cruzadas


Abri a porta de casa, perra, com cuidado de modo a não fazer barulho, fiz algum.
Tenho dezoito degraus pela frente, agrupados em lanços de seis, largos, fáceis de subir, estou habituado.
Subo-os, devagar, um por um, olhando em volta, nada mudou desde o dia anterior. Raramente muda, julgo até que a própria escada se habituou às minhas rotinas.
Podia ser sábado, podia ser domingo.
Outra porta. Meto a chave na ranhura da fechadura. Reparo numa ausência de verniz, circular, desenhada pelas chaves pendentes, pelos anos. Dou duas voltas à chave, abro a porta e entro. Entro no meu mundo, o desvão.
Empurro para cima o interruptor avermelhado.

Luz.

Ao meu lado direito, sob a esquina do telhado, o local de trabalho, o retiro.
A secretária do computador entre dois pequenos móveis de apoio e o estirador que se esconde debaixo de um monte de revistas, papéis, dicionários... tudo arrumado numa desarrumação testemunhada por um calendário que parou no tempo, 1999.
Um L.
Não, um U.
Sim, uma pequena estante com dicionários, prontuários e livros que, por vezes, respondem às minhas dúvidas, faz com que seja um U.
No interior do U, uma cadeira, verde garrafa, que reclama o peso dos anos com uma suplicante chiadeira, não só dos anos.
No chão, encostada ao estirador, a mala de couro, gasta. Uma espécie de escritório ambulante que serviu de secretária nas viagens de barco entre o Barreiro e Lisboa. Muitas vezes, pousava nela os cotovelos e dormitava com a cara apoiada numa das mãos.
Ao meu lado esquerdo, as estantes metálicas, brancas, que carregam 20 anos de passatempos.
A primeira revista, a dedicatória à namorada: “Do namorado que te adora” – Hoje, mulher.
Mais revistas, centenas, do tempo em que passava horas nas casas de fotocópias... ampliações, reduções. Do tempo dos sacos com revistas em promoção, das corridas para o barco, a minha irmã a dizer: – Não posso mais, as minhas canelas vão partir-se. Do tempo em que pais e irmãos ajudavam a pôr por ordem, alfabética, intermináveis listas de palavras.
Desenhos de um desenhador gráfico que preferiu as palavras. Jogos. Pastas e arquivos onde se misturam recordações e ideias. Outras coisas.
Um L.
Sim, aqui os móveis estão dispostos em L.
Espalhados pelo espaço, táxis em miniatura, sempre gostei de juntar coisas.
Os bonecos de barro que fiz que permitiram realizar o sonho de ser músico. O baixo, ali no chão.
À minha frente, o céu deste compartimento acanhado, branco, esconso.
Uma janela.
Dois passos depois, abro a cortina encaixada nas calhas da pequena janela do sótão.
Mais luz. O verdadeiro céu.
Quando, por vezes a noite, fecho a cortina.
Viro a cadeira para mim.

Sento-me.

Sentado, tenho outra visão do espaço, parece-me maior.
Observo algumas fotos: filhas, locais que me marcaram, pessoas que me marcaram... um tio que me demora o olhar – Saudade - estúpido acidente de viação.
Boiões de tinta. Gosto de pintar.

Considero...

Não sou uma pessoa culta, erudita. Não sou linguista. Fui um aluno mediano a Português, gostava de desenhar. Um pouco disléxico até.
Simplesmente, gosto de cruzar palavras e, assim, vou ficando mais culto, um pouco mais versado na língua mãe e melhoro a dislexia.
- Quem diria! – disse-me um dia uma professora antiga.

Recomeço...

Procuro um bloco de folhas quadriculadas sobre o estirador. Encontro-o. Arranco uma folha, A4, dobro-a ao meio e rasgo-a com cuidado.
Pego numa caneta.
Pouso o bico da caneta no vértice de uma das muitas quadrículas da folha e conto.
Conto para mim: dois, quatro, seis, oito, dez... de dois em dois, por fim... onze.
Normalmente, são onze, os pequenos quadrados percorridos.
Primeiro na vertical, de cima para baixo. Voltando ao pondo de partida, traço uma linha na horizontal, da esquerda para a direita... mais onze quadrículas.
Novamente na vertical, desta vez, de baixo para cima. Conto.
Tento acertar no ponto onde terminei a primeira linha vertical e volto a contar, suputar: dois, quatro, seis, oito, dez... onze, na horizontal, da esquerda para a direita, fechando o quadro. Quatro linhas, a grelha, cento e vinte e uma células. Uma tela, por enquanto, despida, nua.
Preencho algumas áreas dessa grelha com riscos rápidos e certeiros de modo a marcar os espaços ausentes de letras. Por vezes surgem curiosos desenhos nesse dispersar de quadrículas pintadas.
Pouso a caneta.
Pego na lapiseira. Nunca um lápis.
A borracha, pouco utilizada, velha, espera a sua vez, descontraída, orgulhosa, sabe da sua utilidade nas situações mais complicadas, daquelas em que até um cabelo, cansado da companhia de dedos massagistas, cai sobre o embaraço.

Penso numa palavra.

Gosto de palavras. Altruísta, paz, ura, amor, livro, aro, amigo, ar, partilhar... xurdir... fazer pela vida.
Aos quarenta anos resolvi tornar-me num leitor compulsivo, ledor.
Encontrei nas frases dos escritores as “minhas” palavras, emprestadas, decoradas, mecanizadas. Afinal, utilizadas.
Descubro outras que servem de inspiração. Anoto-as nas folhas de um caderno, antes vazio... agora, quase cheio.

Sonho...
Desperto...

Volto a pensar numa palavra.
Escrevo, primeiro na horizontal, letra a letra, cada uma no seu sítio. Penso noutra palavra, agora na vertical, que comece por uma das letras daquela que lhe antecedeu, tentando já adivinhar próximos cruzamentos.
Já cruzei muitas palavras... milhões... não me canso.
Vogal, consoante, vogal, consoante... facilita. Vogal, consoante, consoante... dificulta.
O cérebro, treinado, sempre alerta, corresponde. A luta dá-me um certo gozo, prazer.

O puzzle vai ficando completo. Peça a peça, palavra a palavra.

Por vezes, são elas, as palavras, que ditam o destino dos quadrados pintados, sem qualquer simetria. Gosto mais de criar essas Palavras Cruzadas. As palavras mandam então.
Já não uso a tinta da china, já não utilizo a máquina de escrever... um dia pensei em comprar uma máquina de escrever, daquelas que se ligavam à corrente, comprei um computador.

O computador.

Os computadores fazem quase tudo, até Palavras Cruzadas, mas faço questão de continuar a escolher as palavras que enchem as minhas grelhas.
É algo que está bem definido, determinado, eu escolho as palavras, a máquina fica com outras tarefas. Damo-nos bem assim.
Somos, aliás, amigos inseparáveis: o blogue, as redes sociais, a divulgação, a partilha. Feedback, o retorno. O reconhecimento.
Decididamente... não um inimigo, um aliado.

Uma última palavra.

A grelha, antes vazia, completa, pejada de vocábulos, finalmente.
Quando sinto que criei mais do que um simples passatempo, sorrio.
Passou o tempo, não dei por isso.
Pousei a lapiseira sobre a folha quadriculada, ao lado da safa, safinha, como um dia, na Marinha, um grumete do Norte assim me apresentou uma borracha.

Recordo...
Continuo...

O computador está ligado, o teclado receberá as pontas dos meus dedos, treinadas.
Os dicionários digitais estão prontos, os outros, com folhas amareladas, descansam nas prateleiras, mas, por vezes, ainda são abertos numa procura, quase certeira, de um determinado verbete.
Tudo terminará  numa folha impressa que será revista antes que o passatempo se torne revista... ou outra coisa... partilhado... resolvido... solucionado, enfim.

Sonho...
Sonhei este livro...

Nota: Escrevi estas estória no dia em que terminei o meu primeiro livro... partilho-a hoje.

Amplexos e ósculos!...

4 comentários:

  1. Muito bom!!!
    Muito bom, mesmo!
    Quando um sonho se realiza, outros se preparam.

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  2. Li emocionada este teu testemunho. Um homem é o seu caminho. A cultura faz-se de empenho e curiosidade. O mundo precisa muito de pessoas de carácter e generosas como tu.
    Orgulho-me de ter acompanhado, com a "proximidade" que as redes sociais permitem, a concretização desse sonho.
    Faço minhas as palavras da Helena: "Quando um sonho se realiza outros se preparam."

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